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Fiica & Fiona

O lugar era mágico. Com certeza havia algo de misterioso e maravilhoso na atmosfera. Seja pela simplicidade das coisas, ou pelas pessoas que ali viviam. O lugar era impregnado de vida, de valores, de tradições, de encantamento causado pela realidade e verdades próprias de cada morador. Ambos, ambiente e pessoas, formavam um uníssono harmônico de sonhos e perspectivas que resultavam numa melodia de bondade e felicidades. Ao gosto da vida que se apresentava a cada original manhã, unia-se a esperança e a amabilidade sentimentos que eram aperfeiçoados no dia-a-dia. A casa que ficava na entrada era a maior. Por isso mesmo era a que mais chamava a atenção. A janela dava para a rua principal da cidade. Sua dimensão ocultava a vida que se passava por detrás daquelas paredes. Quem passava pela rua não notava as vozes de seus moradores, o choro das crianças, o latir dos cães, ou a festa dos pássaros no pomar. As cenas do cotidiano se desenhavam como em uma tela dos mais cuidadosos pintores, que para representá-las teriam que fazer uso de tintas coloridas e brilhantes. A cor cinza deveria ser deixada de lado, pois tudo era tomado por cores esplendorosamente vivas. Entrava-se no ambiente por um estreito corredor, cujos musgos e trepadeiras haviam tomado posse e ninguém se atrevia a retirá-los dali. O verde pulsava por sobre os muros de tijolos envelhecidos. Os cômodos grandes e as paredes altas davam impressão de imensidão, em cujas dimensões repousavam o infinito de sonhos no qual os moradores depositavam suas vidas. Muitos, ainda crianças, tendo toda uma estrada por percorrer. No canto da cozinha havia um fogão a lenha, de onde surgiam muitas guloseimas de sabores inconfundíveis. O calor do fogo aquecia ainda mais os corações. O café de todas as manhãs era anunciado aos moradores pelo seu típico aroma que se espalhava avisando a todos para se prepararem para o costumeiro encontro. Era um ritual, a mais deliciosa das rotinas. Logo, a cozinha era tomada pelas falas atropeladas de todos ao narrarem os episódios do dia anterior e a preverem o dia que acabava de nascer. Os quadros de santos na parede revelavam uma religiosidade ferrenha. Embora muitos não compreendessem a variedade de santos. Havia santos para todas as situações. Eles eram dispostos na parede em ordem alfabética, para que não fosse dada uma importância maior a um ou outro. A grande matriarca da casa, com seus 70 anos de felicidades, tinha uma grande disposição. Possuía alguns cabelos brancos e uma voz mansa e suave que acalmava qualquer coração aflito. Era boa conselheira, e por isso mesmo, eram muitos que vinham ao seu encontro pedindo uma orientação. De bom coração acolhia a todos com sua bondade infindável. As crianças, por isso mesmo, aproveitavam a benevolência e se fartavam com inúmeros doces que sempre estavam disponíveis nas compotas sobre o armário, dando aos olhos dos que os viam um brilho de desejo e fome.

A porta da cozinha dava para um imenso quintal de terra batida, onde nos fundos havia um bambuzal e um riacho. A horta era cuidada por todos. Havia ali uma variedade muito grande de legumes, verduras e ervas destinadas a chás e temperos. Esses últimos exalavam no ar o perfume próprio da serenidade que pairava sobre o lugar, e faziam um convite ao aconchego. Havia ainda uma laranjeira frondosa que todos os anos agraciava a todos com seus frutos. Em um de seus galhos fortes, e sob a sombra generosa de suas folhas, havia o balanço, que era o brinquedo preferido. As flores se constituíam em uma linguagem própria, como que a homenagear diariamente os moradores. O buquê de campainhas alegrava a mesa do café. A Alfazema perfumava as gavetas de roupas. As margaridas eram as preferidas das crianças, que adoravam colhê-las. Entre tantas outras, os girassóis eram os mais altos do jardim, seguiam o curso diário do sol de leste a oeste. A riqueza das plantas constituía-se em um atrativo para os pássaros, e, principalmente, para os Beija-flores, que se deliciavam de flor em flor. A Grevílea-anã, que se forma como um arbusto arvoreta, com toda a sua inflorescência vermelha era muito apreciada por eles. De todos os acontecimentos no quintal o mais sublime foi o ocorrido no dia em que os bichos invadiram os pés de couve. Para as crianças foi um acontecimento único. Jamais poderiam imaginar que eles poderiam ser invadidos de tal forma. Foi uma correria danada para poder avisar a todos, saíram correndo como cabritos desembestados. No lugar morava também uma parteira muito requisitada na cidade, que impregnava o lugar de um misticismo ainda maior. Para as crianças ela era como a cegonha que trazia os pequeninos ao mundo. O choro de um novo rebento representava a esperança na vida iluminada pelos raios solares, ou pelo luar, que desciam como uma brisa para acalmar o coração aflito das mães. E a vida se fazia presente mais uma vez. Raios solares e luar eram produtos de um mesmo construto. Foi neste ambiente que cresceram as meninas Fiica e Fiona. Fiica era a mais nova, magra, alta, tez morena, cabelo liso, e séria. Fiona era rechonchuda, tez branca, cabelo encaracolado, e sorridente. As duas irmãs não se separavam nunca. Eram amigas, confidentes, irmãs verdadeiramente além do sangue que corria em suas veias. Em uma daquelas manhãs de verão, naqueles tempos, as duas estavam sentadas ali no fundo do quintal, apenas observando os pássaros, quando Fiica perguntou:

– Fiona, o que é um jaburu? Fiona pensou um pouco e logo respondeu: – Jaburu... Jaburu é uma ave pernalta, de longo bico. Fiica não gostou nada da explicação, pois no dia anterior a vizinha a havia chamado de jaburu, mas continuou o interrogatório: – Fiona, o que é um jabuticabal? Fiona sabendo deste ritual da irmã de perguntar sem parar até que se esgotassem todas as possibilidades, mandou: – Fiica, jabuticabal é um bosque de jabuticabeiras, e jabuticabeira é a árvore que dá jabuticabas e jabuticabas são os frutos das jabuticabeiras. Fiica dando-se por satisfeita calou-se. E um silêncio absoluto tomou conta de seu ser. Com os olhos fixos no céu, olhava as nuvens que boiavam no céu azul num voo lento e suave, e como em um passe mágico formava dragões, coelhos, cabras, como se fossem de algodão. E assim ficava horas, como se tivesse asas e pudesse tocar as nuvens. Nova manhã de verão. O galo já havia cantado. O dia começava a clarear, seria um lindo dia, as duas irmãs teriam muito por fazer. O Sol logo iluminaria o local. Muitas possibilidades. Havia diversas possibilidades nessa vida. Fiona levantou-se, a mesa já estava preparada, sentar-se-ia ao redor da mesa, para o café da manhã sobre a brancura da toalha. Ali repousavam os mais deliciosos bolos de fubá, bolinhos de queijo das Minas Gerais. O leite já estaria preparado, se não fosse o acontecido. As horas já se passavam. Fiica não se levantava. Foram verificar, gritos tomaram conta do lugar. A manhã e a vida já não mais seriam as mesmas. Mas, os raios solares e o luar continuariam a banhar todos os dias aquele lugar, apesar daquilo tudo.

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